Série Nestlé Volume 3
Educação Continuada em Feridas Crônicas
Dr. Adriano Mehl
O processo de cicatrização de feridas está dividido em fases inflamatória, proliferativa e de remodelagem que são sobrepostas e interdependentes. Pacientes com feridas apresentam as necessidades nutricionais aumentadas para a formação de novos tecidos após uma lesão. Então, para que todas as fases sejam otimizadas em suas funções, os pacientes com feridas precisam ter uma abordagem holística de tratamento. Em específico, cabe aos profissionais da saúde lembrar sobre a importância do estado nutricional em relação à cicatrização de feridas, principalmente nos pacientes com feridas crônicas.
Feridas geram dois tipos de dano tecidual que são classificados como primário e secundário. Ambos são deletérios, pois se não for possível reverter os danos primários, que colaboram com a interrupção do fornecimento de nutrientes e oxigênio aos tecidos, estes levarão aos danos secundários. O problema está aí, pois os danos secundários levam à infecção, que mantém a atividade inflamatória, e retroalimenta os efeitos dos danos primários, transformando-se em um ciclo vicioso.
Existem vários fatores que influenciam no reparo total do tecido. Dentre eles estão os sistêmicos, relacionados ao paciente, e os locais, ligados à ferida.
Exemplos de fatores sistêmicos e locais:
Fatores sistêmicos de interferência
- Doença vascular
- Edema
- Desnutrição
- Diabetes
- Cirurgia ou radiação
- Corticoides
- Antineoplásicos
- Anti-inflamatórios não esteroidais
- Tabagismo
Fatores locais de interferência
- Tamanho da ferida
- Tempo de evolução
- Localização anatômica
- Presença de corpo estranho
- Tecido necrótico
- Mecanismo de Lesão - exsudato
- Perfusão tecidual
Os fatores sistêmicos e locais de interferência podem ser reversíveis ou irreversíveis.
Dentre os fatores sistêmicos que podem influenciar na cicatrização de feridas, vale o destaque para:
Hipóxia
Ocorre nas células e tecidos devido a uma variedade de condições. A condição de hipóxia, quando mantida, prejudica todas as fases do processo de cicatrização, contribuindo para a redução da taxa de replicação dos fibroblastos e, consequentemente, a formação de colágeno.
O oxigênio, além de ser importante para produzir energia, possui função considerável no processo cicatricial, em específico na atividade inflamatória. Além de ser substrato essencial para modulação da expressão genética de células inflamatórias, está envolvido no combate às infecções e na produção de colágeno pelos fibroblastos.
Diabetes
Nas pessoas com diabetes, a capacidade de cicatrização pode encontrar-se diminuída por conta da hiperglicemia sustentada, a qual compromete a resposta inflamatória e a imunidade, prejudicando o recrutamento e a função das células de defesa, como os neutrófilos.
Associado a isto, a hiperglicemia reduz a síntese de colágeno pelos fibroblastos, interferindo desfavoravelmente na formação de novos vasos sanguíneos, prejudicando a nutrição tecidual. Também, compromete a migração epitelial e a contração da ferida. Repercute, portanto, em todas as fases da cicatrização, colaborando para que a pessoa com diabetes não controlado aumente os riscos de infecção, déficit cicatricial e, consequentemente, para o não fechamento de feridas.
Nutrição
O processo cicatricial demanda um maior consumo energético para a formação de células e de novos tecidos. Então, para que a cicatrização ocorra de forma equilibrada, é necessária atenção especial a fatores como o bom controle glicêmico, o aporte proteico energético adequado e a hidratação.
Frente a uma ferida, o organismo requer alta demanda metabólica, em consequência da resposta catabólica à lesão, além de macronutrientes, glicose, oxigênio e cofatores, como as vitaminas A, C e E, e os minerais ferro e zinco para manutenção:
O melhor método para apoiar a biossíntese do colágeno da ferida é fornecer nutrição adequada para assegurar a provisão de todos os macro e micronutrientes envolvidos no processo cicatricial.
Dentre os fatores locais que podem interferir na cicatrização de feridas, vale o destaque para:
Biofilmes
Biofilmes são comunidades microbianas complexas que podem comprometer e lentificar a cicatrização. Estão presentes em 60% a 90% das feridas crônicas e responsáveis por 80% das infecções e reinfecções em feridas, sendo as bactérias o grupo predominante.
O déficit cicatricial das feridas crônicas está cada vez mais correlacionado à presença de biofilmes bacterianos. Bactérias mantêm a atividade inflamatória que pode colaborar para a exsudação, cronificação e aumento dos níveis de metaloproteases de matriz (MMPs), prejudicando assim tanto a matriz extracelular (MEC) da ferida como a pele perilesional.
Edemas
O edema pode ser um problema local (por reação inflamatória) e/ou sistêmico (desnutrição/infiltração/pressão coloiosmótica). Pode ser classificado como a entrada de líquido e proteínas no interstício, além da capacidade de captação capilar linfática. Possui participação importante no sistema imunológico aumentando as citocinas e, consequentemente, a resposta inflamatória pela ação dos neutrófilos e macrófagos o que influencia grandemente na formação de feridas.
O déficit cicatricial está relacionado à presença de infecção crônica. Nesse caso, o objetivo do preparo do leito e tratamento de feridas é minimizar os riscos de infecção para o aparecimento de um tecido saudável no processo de cicatrização. Para potencializar a cicatrização, é necessária a otimização da resposta individual do hospedeiro, a redução da carga microbiana local, bem como a avaliação regular da situação clínica.
Fatores básicos do preparo do leito de uma ferida que reduzem e controlam a microbiota:
- 1. Limpeza;
- 2. Desbridamento;
- 3. Controle da carga bacteriana;
- 4. Controle do exsudato.
A família de MMPs é um grupo de enzimas contendo zinco e dependentes de cálcio e, que estão envolvidas na degradação da MEC através da hidrólise de proteínas e outros componentes, como colágeno, elastina e glicoproteínas.
Metaloproteases (MMPs)
A degradação da MEC é essencial para o reparo e remodelação da ferida. Porém, níveis elevados de MMPs podem degradá-la excessivamente, impedindo o estímulo para a migração celular e contribuindo para a inibição da cicatrização da ferida.
Níveis elevados de MMPs são encontrados nas feridas crônicas, sendo um dos importantes fatores de interferência cicatricial.
Exsudatos
O exsudato da ferida crônica é caracterizado por maiores concentrações de citocinas pró-inflamatórias, radicais livres de O2, MMPs e elastase. Quando em excesso, pode aumentar os riscos de infecção local, acelerar o aparecimento de maceração nos tecidos perilesionais e prejudicar a função barreira da pele.
PH da pele
A epiderme possui pH médio de 5,5, podendo variar conforme a região da superfície corpórea entre pH 3,8 a 6,6. O pH ácido é um recurso de proteção, principalmente contra a microbiota bacteriana.
Destruição do filme hidrolipídico
O filme hidrolipídico auxilia na hidratação e lubrificação da epiderme, contribuindo para a qualidade sensorial da pele, retardando sua descamação e agindo como barreira, defendendo a epiderme contra a agressão da microbiota (que pode ser formada por bactérias, fungos, vírus etc).
Sua remoção por excesso ou erros de limpeza influencia na quebra da barreira cutânea, favorecendo a invasão por germes e substâncias nocivas.
Concluindo, o paciente com ferida exige uma assistência sistematizada que envolve um trabalho interdisciplinar. Dentro desse cuidado assistencial, é extremamente importante a determinação, identificação e sinalização de possíveis pontos de interferência no processo cicatricial, sejam eles sistêmicos ou locais. Assim, um melhor tratamento pode ser pode ser implementado através de protocolos específicos.
Fatores sistêmicos de interferência na cicatrização como a NUTRIÇÃO, A HIDRATAÇÃO E A HIPÓXIA devem ser sempre avaliados nos pacientes, independentemente do estágio em que se encontra a ferida. O CONTROLE GLICÊMICO também deve ser monitorado com frequência no paciente com ou sem diabetes mellitus prévio.
Referências consultadas
1. Krasner DL, Sibbald RG, Woo KY. Wound Dressing Product Selection A Holistic, Interprofessional Patient- Centered Approach. Kestrel Wound Source White, 2010.
2. World Union of Wound Healing Societies. Minimising Pain at Wound Dressing-related Procedures. A Consensus Document. London: MEP, 2004. Available from URL: http://www.woundsinternational.com/pdf/content_39.pdf.
3. Dykes PJ, Heggie R, Hill SA. Effects of adhesive dressings on the stratum corneum of the skin. J Wound Care 2001; 10(2): 7-10.
4. Projeto Diretrizes SBACV, 2015.
5. Ziello JE, Jovin IS, Huang Y. Hypoxia-Inducible Factor (HIF)-1 Regulatory Pathway and its Potential for Therapeutic Intervention in Malignancy and Ischemia. Yale J Biol Med; 80(2):51-60, Jun 2007.
6. Witte MB, Barbul A. Princípios gerais da cicatrização das feridas. In: Barbul A. Clínicas Cirúrgicas da América do Norte Vol. 3. Rio de Janeiro: Interlivros, 1997.
7. Demling RH. Nutrition, Anabolism, and the Wound Healing Process: An Overview. Eplasty; v9, p65-88, February 2009.
8. Dias CAMSV. Nutrição e Cicatrização de Feridas - Suplementação Nutricional? 2009. Monografia – Faculdade de Ciência da Nutrição e Alimentação – Universidade do Porto.
9. Wild T, Rahbarnia A, Kellner M et al. Basics in nutrition and wound healing. Nutrition 2010; 26: 862-6.
10. Ord H. Nutritional support for patients with infected wounds. Br J Nursing 2007; 16:1346-8,1350-2.
11. Collins N. Protein and wound healing. Adv Skin Wound Care 2001; 14:288-9.
12. Janis JE, Harrison B. Wound Healing: Part I. Basic Science. Plast Reconstr Surg. 2016;1 38:9-17S.
13. Albaugh VL, Mukherjee K, Barbul A. Proline Precursors and Collagen Synthesis:Biochemical Challenges of Nutrient Supplementation and Wound Healing. J Nutr;147:2011–7, 2017.
14. Geovanini T, Oliveira Jr AG, Palermo,TCS. Manual de Curativos. 2ª Ed. Rev. e ampl. Editora Corpus, São Paulo, 2007.
15. Anderson B. Nutrition and wound healing: the necessity of assessment. British Journal of Nursing; 14(19): S30-38, 2005.
16. Hurlow J, Blanz E, Gaddy JA. Clinical investigation of biofilm in nonhealing wounds by high resolution microscopy techniques. J Wound Care;25(Suppl 9):S11–S22, p2, September, 2016.
17. Oliveira SHS, Soares MJGO, Rocha PS. Uso de cobertura com colágeno e aloe vera no tratamento de ferida isquêmica: estudo de caso. Rev. Esc. Enferm. USP; 44(2): 346-51, 2010.
18. Bianchi J. The cleansing of superficial traumatic wounds. Br J Nurs 2000;9:S28,S30,S32.
19. Dissemond J,Dietlein M, Neßeler I, Funke L, Scheuermann O, Becker E, Thomassin L, Möller U, Bohbot S, Münter KC. Use of a TLC-Ag dressing on 2270 patients with wounds at risk or with signs of local infection: na observational study. Journal of Wound Care Vol. 29, No. 3 Research.Published Online:11 Mar 2020. https://doi.org/10.12968/ jowc.2020.29.3.162.
20. International Consensus. Appropriate use of silver dressings in wounds. An expert working group consensus. London: Wounds International, 2012.Available to download from: www.woundsinternational.com Hurlow J, Bowler PG. Clinical experience with wound biofilm and management: a case series. Ostomy Wound Manage 2009; 55(4): 38-49.
21. Ovington LG. The truth about silver. Ostomy Wound Manage. 2004 Sep;50(9A Suppl):1S-10S.
22. Leaper D, Assadian O, Edmiston C.E. Approach to chronic wound infections. British Journal of Dermatology. 2014;173:351–358.
23. Percival SL, Bowler P, Woods EJ. Assessing the effect of an antimicrobial wound dressing on biofilms. Wound Repair and Regeneration. 2008 Jan-Feb;16(1):52-7.
24. James GA, Swogger E, Wolcott R, et al. Biofilms in chronic wounds. Wound Repair Regen 2008;16(1):37-44.
25. Vestby LK, Nesse LL. Wound care antiseptics - performance differences against Staphylococcus aureus in biofilm. Acta Vet Scand.;57:22, May 4, 2015.
26. Skrlin J. Impact of biofilm on healing and a method for identifying it in the wound. Acta Med Croatica;70(1):29-32,Mar,2016.
27. Kucisec-Tepes N. The role of antiseptics and strategy of biofilm removal in chronic wound. Acta Med Croatica;70(1):33-42, Mar, 2016.
28. Kasnowski MC, Mantilla SPS, Oliveira LAT, Franco RM. Formação de biofilme na indústria de alimentos e métodos de validação de superficies. Revista Científica Eletrônica de Medicina Veterinária;Ano VIII;n15, julho de 2010.
29. Hall-Stoodley L, Stoodley P. Evolving concepts in biofilm infections. Cell Microbiol; 11(7): 1034-43,2009.
30. Costerton JW, Stewart PS, Greenberg EP. Bacterial biofilms: a common cause of persistent infections. Science;284(5418): 1318-22,1999.
31. Wolcott RD, Rhoads DD, Bennett ME, et al. Chronic wounds and the medical biofilm paradigm. J Wound Care; 19(2): 45-50,52-53, 2010.
32. Skrlin J. Impact of biofilm on healing and a method for identifying it in the wound. Acta Med Croatica.;70(1):29-32,Mar,2016.
33. Dissemond J, Dietlein M, Neßeler I, Funke L, Scheuermann O, Becker E, Thomassin L, Möller U, Bohbot S, Münter KC. Use of a TLC-Ag dressing on 2270 patient swith wounds at risk or with signs of local infection: an observational study. Journal of Wound Care Vol. 29, No. 3 Research. Published Online:11 Mar 2020. https://doi.org/10.12968/jowc.2020.29.3.162.
34. Caley MP, Martins VLC, O’Toole EA. Metalloproteinases and wound healing. Adv Wound Care (Nova Rochelle); 4(4):225-234, April 2015.
35. Schultz G, Dowsett C. Wound bed preparation revisited. Wounds International; 3(1):25-9, 2012.
36. Schultz GS, Sibbald RG, Falanga V, Ayello EA, Dowsett C, Harding K, et al. Wound bed preparation: a systematic approach to wound management. Wound Repair Regen 2003; 11(Suppl 1): S1-28.
37. Hampton S, Stephen-Haynes J. Skin maceration: assessment, prevention and treatment. In: White R , editor. Skin Care in Wound Management: Assessment, prevention and treatment. Aberdeen: Wounds UK, 2005.
38. Thomas S. The role of dressings in the treatment of moisture-related skin damage. World Wide Wounds 2008.
39. Romanelli M. Science and Practice of Pressure Ulcer Management. London: European Pressure Ulcer Advisory Panel/Springer, 2006.
40. Sibbald RG, Cameron J, Alavi A. Dermatological aspects of wound care. In: Krasner DL, Rodehaver GT, Sibbald RG, editors. Chronic Wound Care: A clinical source book for healthcare professionals. Malvern: HMP Communication, 2007.
41. Wolcott RD, Rhoads DD, Dowd SE. Biofilms and chronic wound inflammation. J Wound Care 2008; 17(8): 333-41.
42. Ali SM, Yosipovitch G. Skin pH: From Basic Science to Basic Skin Care. Acta Derm Venereol 2013;93:261–267.
43. Yamada BFA. Pele - o manto protetor: higiene e hidratação. São Paulo, Ed. Andreoli, 2015.
44. Azevedo MF, Rodrigues MIG, Hennemann TLA. Incrivelmente fácil: feridas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.
45. Benbow M. Evidence-based wound management. Whurr Publishers, 2005.
46. Mora PC, Baraldi PG. Dermocosmetic Applications of Polymeric Biomaterials. Polymeric Biomaterials by Severiano Dumitriu;c18,p476,CRC Press, Nov, 2001.
Existem vários fatores que influenciam no reparo total do tecido. Dentre eles estão os sistêmicos, relacionados ao paciente, e os locais, ligados à ferida. Saiba mais no artigo desenvolvido pelo Dr. Adriano Mehl.
Faça o Login ou Cadastre-se para ver todos os conteúdos exclusivos