A arginina é um aminoácido semi-essencial, sendo uma de suas fontes a proteína da dieta (cerca de 4-6 g/dia), absorvida principalmente no jejuno, ou originada da síntese de novo a partir da citrulina (10-15% da produção total), ou ainda advinda da reciclagem de aminoácidos (aproximadamente 80%). Além disso, ainda desempenha importante papel no transporte, armazenamento e excreção da amônia e na função central do sistema imunológico.1-3
Ao falarmos de sistema imunológico, é importante destacar o papel especialmente fundamental no metabolismo de macrófagos e linfócitos T. A arginina aumenta a atividade dos macrófagos e a relação CD4:CD8, incrementando o número de linfócitos em placas de Peyer. Contribui também para a produção de imunoglobulina A, expressão do ácido ribonucleico mensageiro (RNA), assim como incrementa a produção de citocinas Th1 e Th2. Essas atividades sugerem que a arginina atue em ambas as respostas imunológicas: celular e humoral. É também precursora da síntese de moléculas com enorme importância biológica, incluindo ureia, ornitina, poliaminas, óxido nítrico, creatina, agmatina, entre outras.4-6
A arginina é degradada por duas importantes enzimas: arginase e óxido nítrico sintase – NOS (Figura 1).7 Em relação a esta última, de acordo com a isoforma envolvida – eNOS (predominantemente presente no endotélio), iNOS (predominantemente no fígado, macrófagos e outros tecidos imunológicos) ou nNOS (em maior concentração nos tecidos neuronais) – geram-se diferentes concentrações de produtos finais que causam desfechos clínicos distintos.8-10
Em suma, a arginina tem papel relevante em distintas vias orgânicas; logo, impacta no tratamento de pacientes graves. Salienta-se a sua importância na síntese e degradação proteica, nas vias inflamatórias e imunológicas e também na perfusão e oxigenação celular, assim como na cicatrização de feridas
O paciente crítico
O paciente crítico tem, em geral, disfunção de um ou mais órgãos em consequência de trauma/estresse grave. Nesse cenário, a homeostase é comprometida e a perda de equilíbrio provoca resposta orgânica marcada por alterações metabólicas, hormonais, inflamatórias, imunológicas e neuroendócrinas. Órgãos e funções não vitais são colocados em stand-by, enquanto outros elementos são fundamentais à tentativa de manter a sobrevida do paciente. Esses enfermos têm deficiência de arginina, decorrente da baixa ingestão (disponibilidade), do aumento da degradação ou da síntese de novo alterada.11-14
Uma das áreas mais afetadas pelo estresse grave é o trato gastrointestinal. A perda da função de barreira da mucosa intestinal é comum e permite a translocação de bactérias e toxinas a partir do lúmen. Ademais, as alterações na microbiota intestinal secundárias ao uso de antibióticos, à diminuição da acidez gástrica e à produção de muco, assim como as mudanças na motilidade, favorecem o risco aumentado de complicações, em especial as infecciosas.15
Outro aspecto importante, característico do paciente crítico, está associado à produção de óxido nítrico. Este é um composto que se difunde livre e rapidamente a partir dos locais de formação para os sítios de ação. O óxido nítrico parece desempenhar no organismo uma dupla função, paradoxalmente com efeitos benéficos u destrutivos, dependendo da quantidade produzida.4 Em casos de sépsis, essa dualidade é ainda mais controversa.11, 12, 14,16,17
A infecção libera endotoxinas e estimula a produção de citocinas pela via Th1, que, por sua vez, iniciam a cascata que provoca aumento da expressão da NOS, especialmente da iNOS, em vários tecidos (pulmão, fígado, intestino). Diferentes hipóteses podem explicar a “dupla personalidade” do óxido nítrico (NO) produzido durante a sépsis.11, 12, 14,16,17
A excessiva produção de NO leva ao relaxamento de vasos, hipotensão refratária e choque, causando hipóxia grave em órgãos vitais, fator associado à falência orgânica. Contudo, por outro lado, o rim pode beneficiar-se da vasodilatação local e, assim, talvez seja protegido.

Nesse ponto, um aspecto positivo decorrente da produção de NO é a promoção da inibição da agregação de plaquetas e da adesão de neutrófilos, sendo isso fator protetor em vários órgãos. Destaca-se, além disso, que o NO tem capacidade de neutralizar o estresse oxidativo, minimizar a apoptose e matar agentes patogênicos, como as bactérias, o que confere os benefícios positivos dessa enzima.18
Pacientes críticos também estão expostos a altos níveis de dimetilarginina assimétrica (ADMA) – um análogo da arginina – aparentemente devido à insuficiência hepática e renal, órgãos que desempenham papel chave em estados críticos.19-21 Além disso, pacientes graves também apresentam resistência à insulina, com concomitante hiperglicemia, o que inibe a função da dimetilarginina dimetilaminohidrolase (DDAH), enzima que converte a ADMA em citrulina. Assim, a relação arginina/ ADMA é reduzida. Isso pode ocorrer devido a baixos níveis de arginina, a níveis de ADMA elevados, ou ambos, o que induz a inibição da formação de óxido nítrico com impacto na regulação vascular e perfusão de órgãos. Esse desequilíbrio, portanto, leva à diminuição da produção de NO, causando disfunção endotelial, risco cardiovascular e progressão do dano renal, em círculo vicioso.19-21
Além do citado acima, durante a doença crítica, as células de Kupffer – os macrófagos do fígado, importantes para o mecanismo de defesa orgânica liberam grandes quantidades de mediadores inflamatórios. Esse estado induz processos patológicos locais, tais como estresse oxidativo e dano direto à proteína DDAH presente no órgão. A subsequente deterioração da atividade de DDAH também gera níveis elevados de ADMA. Nesse ponto, o círculo vicioso é disparado e, assim, níveis elevados de ADMA resultam em maior morbidade e mortalidade entre esses pacientes.21 Dessa forma, a oferta de arginina exógena é fundamental para tentar restaurar a melhor relação arginina/ADMA.
Por último, a arginina está envolvida na cicatrização de feridas, uma vez que, quando degradada pela arginase, produz poliaminas e prolina que regulam o processo cicatricial decorrente da maior síntese de colágeno.22
O que diz a literatura?
A arginina parece desempenhar papel regulador importante no paciente crítico. A magnitude da resposta orgânica e a abordagem inicial desses doentes são fatores determinantes que influenciam a morbimortalidade.23 Dados experimentais do nosso grupo de pesquisa mostraram que nutrientes imunomoduladores, tais como glutamina, citrulina e arginina, foram capazes de reduzir a translocação bacteriana no modelo animal de obstrução intestinal.24-30 Por outro lado, o tratamento por sete dias com arginina e L-NAME (inibidor indireto do NO) em animais knock-out para iNOS levou à ausência de efeitos benéficos da arginina e aumentou a translocação bacteriana. Esses resultados apontam, em modelo animal, que a via do NO é responsável pela ação da arginina na barreira intestinal.
A sugestão de que a arginina representa uma ameaça para o paciente grave baseia-se principalmente na hipótese de que, sendo a arginina substrato para a produção do óxido nítrico, isso causará vasodilatação excessiva e instabilidade hemodinâmica com agravamento da hipotensão.31 No entanto, dados de um ensaio clínico randomizado (RCT) mostraram que, quando o inibidor não seletivo da óxido nítrico sintase foi administrado em altas doses, em pacientes com sépsis grave e choque séptico, ocorreu significante aumento da mortalidade entre esses enfermos, enquanto tal não foi observado no grupo que recebeu placebo [(5% de dextrose) 59% vs 49%, respectivamente (p < 0,001)].32
Por outro lado, a hipótese de que a vasodilatação controlada seja benéfica a doença crítica e sépsis baseia-se na premissa de que choque, por definição, é a “insuficiente oferta de oxigênio e nutrientes para manter a função celular”. Pode ser que a vasodilatação causada pela arginina seja um mecanismo adaptativo para aumentar a oferta de oxigênio à célula.
Até recentemente, poucos estudos avaliaram a arginina como agente no tratamento do paciente séptico grave. Luiking et al. mostraram que a suplementação de arginina em pacientes sépticos, em infusão contínua e na forma dose/resposta, aumentou a síntese de novo e também a produção de NO.31-36 Esses pacientes, no início do estudo, apresentaram proteólise intensa. Contudo, durante a infusão da arginina, ambas as quebra e síntese diminuíram.34 Ademais, houve aumento do débito cardíaco com diminuição do lactato arterial, indicando melhor perfusão sistêmica.
Kao et al., avaliando pacientes com sépsis identificaram níveis baixos de arginina que, segundo os autores, foram consequência da inadequada síntese de novo.35 Em pacientes com enfermidades cardiovasculares, a suplementação de arginina de forma dose-dependente parece ter impacto positivo na evolução destes.36
As controvérsias sobre o uso da arginina pura ou em fórmulas que contenham esse aminoácido, em pacientes críticos, persistem, ainda que os trabalhos recentes e anteriormente citados refutem esse receio. Dessa forma, mais estudos precisam ser realizados com método adequado para que melhor se elucide o dilema da arginina, do óxido nítrico e também da ADMA.

Referências bibliográficas
1. Flora filho R., Zilberstein B. Óxido nítrico: o simples mensageiro percorrendo a complexidade. Metabolismo, síntese e funções. Rev. Assoc. Med. Bras. 2000;46.
2. Böger RH, Bode-Böger SM. The clinical pharmacology of L-arginine. Annu Rev Pharmacol Toxicol. 2001;41:79-99.
3. Almeida DT et al. La arginina en su contexto metabólico e fisiológico. Acta bioquím. clín. Latinoam 2003;37(2):165-179.
4. Barbul A, Uliyargoli A. Use of exogenous arginine in multiple organ dysfunction syndrome and sepsis. Crit Care Med. 2007;35:S564-7.
5. Albina JE, Mills CD, Henry WL Jr, Caldwell MD. Regulation of macrophage physiology by L-arginine: role of the oxidative L-arginine deiminase pathway. J Immunol. 1989;143:3641–6.
6. Rodriguez PC, Zea AH, DeSalvo J et al. L-Arginine consumption by macrophages modulates the expression of CD3 zeta chain in T lymphocytes. J Immunol. 2003;171:1232–9.
7. Davisson Correia MI, Martindale RG. The Safety of Arginine in the Critically Ill Patient: What Does the Current Literature Show? Current Nutrition Reports, 2015;4:230-235.
8. Zhu X, Pribis JP, Rodriguez PC, Morris SM, Vodovotz Y, Billiar TR, et al. The central role of arginine catabolism in T-cell dysfunction and increased susceptibility to infection after physical injury. Ann Surg. 2014;259:171-8.
9. Morris SM. Arginine: master and commander in innate immune responses. Sci Signal. 2010;3:pe27.
10. Morris SM. Recent advances in arginine metabolism: roles and regulation of the arginases. Br J Pharmacol. 2009;157:922-30.
11. Cohen J, Chin w. Nutrition and sepsis. World Rev Nutr Diet. 2013;105:116-25.
12. Hirose T, Shimizu K, Ogura H, Tasaki O, Hamasaki T, Yamano S, et al. Altered balance of the aminogram in patients with sepsis - the relation to mortality. Clin Nutr. 2014;33:179-82.
13. Koch A, Weiskirchen R, Bruensing J, Dückers H, Buendgens L, Kunze J, et al. Regulation and prognostic relevance of symmetric dimethylarginine serum concentrations in critical illness and sepsis. Mediators Inflamm. 2013;2013:413826.
14. Kalil AC. Is it time to replace L-arginine in severe sepsis? Crit Care Med. 2011;39:417-8.
15. Ukleja A. Altered GI motility in critically Ill patients: current understanding of pathophysiology, clinical impact, and diagnostic approach. Nutr Clin Pract. 2010;25:16-25.
16. Preiser JC, Luiking Y, Deutz N. Arginine and sepsis: a question of the right balance? Crit Care Med. 2011;39:1569-70.
17. Wijnands KA, Castermans TM, Hommen MP, Meesters DM, Poeze M. Arginine and Citrulline and the Immune Response in Sepsis. Nutrients. 2015;7:1426-63.
18. Suchner U, Heyland DK, Peter K. Immune-modulatory actions of arginine in the critically ill. Br J Nutr. 2002;87:S121–32.
19. Aydemir O, Ozcan B, Yucel H, et al. Asymmetric dimethylarginine and l-arginine levels in neonatal sepsis and septic shock. J Matern Fetal Neonatal Med. 2014:1-6. 20. Brinkmann SJ, de Boer MC, Buijs N, van Leeuwen PA. Asymmetric dimethylarginine and critical illness. Curr Opin Clin Nutr Metab Care. 2014;17:90-7.
21. Koch A, Weiskirchen R, Kunze J, et al. Elevated asymmetric dimethylarginine levels predict short- and long-term mortality risk in critically ill patients. J Crit Care. 2013;28:947-53.
22. Soriano JV, Perez EP. Nutrição e feridas crônicas. Grupo nacional para el estudio y asesoramiento em ulceras por presión y heridas cronicas. Documento tecnico GNEAUPP nºXII 2011.
23. Plank LD, Hill GL. Sequential metabolic changes following induction of systemic inflammatory response in patients with severe sepsis or major blunt trauma. World J Surg. 2000;24:630-8.
24. Quirino IE, Carneiro MB, Cardoso VN, das Graças Carvalho Dos Santos R, Vieira LQ, Fiuza JA, et al. Arginine Supplementation Induces Arginase Activity and Inhibits TNF-α Synthesis in Mice Spleen Macrophages After Intestinal Obstruction. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2014.
25. Santos RG, Quirino IE, Viana ML, Generoso SV, Nicoli JR, Martins FS, et al. Effects of nitric oxide synthase inhibition on glutamine action in a bacterial translocation model. Br J Nutr. 2014;111:93-100.
26. Quirino IE, Cardoso VN, Santos R, Evangelista WP, et al. The role of L-arginine and inducible nitric oxide synthase in intestinal permeability and bacterial translocation. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2013;37:392-400.
27. Viana ML, Dos Santos R, Generoso SeV, Nicoli JR, et al. The role of L-arginine-nitric oxide pathway in bacterial translocation. Amino Acids. 2013;45:1089- 96.
28. Batista MA, Nicoli JR, Martins FoS, Machado JA, et al. Pretreatment with citrulline improves gut barrier after intestinal obstruction in mice. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2012;36:69-76.
29. dos Santos R, Viana ML, Generoso SV, Arantes RE, Davisson Correia MI, Cardoso VN. Glutamine supplementation decreases intestinal permeability and preserves gut mucosa integrity in an experimental mouse model. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2010;34:408-13.
30. Viana ML, Santos RG, Generoso SV, et al. Pretreatment with arginine preserves intestinal barrier integrity and reduces bacterial translocation in mice. Nutrition. 2010;26:218-23.
31. Luiking YC, Poeze M, Ramsay G, Deutz NE. The role of arginine in infection and sepsis. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2005;29:S70-4.
32. López A, Lorente JA, Steingrub J, et al. Multiple-center, randomized, placebo-controlled, double-blind study of the nitric oxide synthase inhibitor 546C88: effect on survival in patients with septic shock. Crit Care Med. 2004;32:21-30.
33. Luiking YC, Poeze M, Ramsay G, Deutz NE. Reduced citrulline production in sepsis is related to diminished de novo arginine and nitric oxide production. Am J Clin Nutr. 2009;89:142-52.
34. Luiking YC, Poeze M, Deutz NE. Arginine infusion in patients with septic shock increases nitric oxide production without haemodynamic instability. Clin Sci (Lond). 2015;128:57-67.
35. Kao CC, Bandi V, Guntupalli KK, et al. Arginine, citrulline and nitric oxide metabolism in sepsis. Clinical science. 2009;117:23-30. 36. Boger RH. The pharmacodynamics of L-arginine. The Journal of nutrition. 2007;137:1650S-5S.
A arginina é um aminoácido semi-essencial, sendo uma de suas fontes a proteína da dieta (cerca de 4-6 g/dia), absorvida principalmente no jejuno, ou originada da síntese de novo a partir da citrulina (10-15% da produção total), ou ainda advinda da reciclagem de aminoácidos (aproximadamente 80%).
Faça o Login ou Cadastre-se para ver todos os conteúdos exclusivos