Lidia Lis Tomasi
- Fonoaudióloga | CRFa 2-10071-7
- Pós-graduanda em Disfagia
- Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana (UFSM)
- Fonoaudióloga do Serviço de Reabilitação Cardiopulmonar do Hospital Sírio-Libanês
Os distúrbios de deglutição, também denominados de disfagia orofaríngea, se caracterizam por qualquer dificuldade no transporte da saliva ou do bolo alimentar da boca até o estômago e que afete a habilidade do indivíduo em beber ou comer. A disfagia geralmente leva a duas principais preocupações funcionais: 1,2
- Incapacidade do indivíduo em deglutir com segurança, permitindo a entrada do material nas vias aéreas (penetração/aspiração), causando uma possível pneumonia;
- Incapacidade de deglutir com eficiência, possibilitando a permanência de resíduos na faringe e aumentando o risco de desnutrição.
Com o intuito de evitar as complicações causadas pela disfagia, a identificação dos indivíduos com distúrbios de deglutição se faz necessária. Os fonoaudiólogos são os profissionais habilitados para prevenir, avaliar e diagnosticar as alterações funcionais da deglutição, bem como habilitar/reabilitar essas funções e gerenciar esses distúrbios, assim como treinar os membros da equipe multidisciplinar e cuidadores para a identificação de indivíduos com disfagia e encaminhamento para avaliação clínica fonoaudiológica.3
Visando a identificação e avaliação precoce da disfagia, instrumentos de rastreio e avaliação clínica estão descritos na literatura ea escolha de um ou outro está intimamente relacionada ao questionamento que o profissional está tentando responder. É importante ressaltar que esses instrumentos tornam a investigação dos distúrbios de deglutição mais planejada e fidedigna e possuem diferentes objetivos.
Os instrumentos de rastreio examinam os sintomas, enquanto a avaliação examina a anatomia e a fisiologia. 5
Rastreio: Identificação dos sintomas por:5
- tosse;
- pigarro;
- voz molhada;
- deglutições múltiplas;
- estase em cavidade oral.
Avaliação:Identificação de alterações na anatomia e fisiologia da deglutição como:5
- força de ejeção oral diminuída;
- atraso no disparo do reflexo da deglutição;
- elevação laríngea diminuída.
Os instrumentos de rastreio, muitas vezes denominados na literatura internacional como screenings, triagens ou questionários, são estruturados para eleger a possibilidade ou risco de um indivíduo ter ou não um sintoma não reconhecido ou uma doença, por meio da história clínica, de exame físico, de um exame laboratorial ou de outro procedimento de fácil aplicação. 5-7
Em geral, os instrumentos de rastreio são projetados para serem aplicados rapidamente, em média de 15 a 20 minutos, relativamente não invasivos e com pouco risco para o paciente, ao mesmo tempo em que identifica os sintomas de disfagia que requerem posterior avaliação diagnóstica aprofundada, realizada pelo fonoaudiólogo. 5,7
O rastreio da disfagia orofaríngea caracteriza-se por ser um procedimento de “passa ou falha” para identificar indivíduos que necessitem de avaliação completa da função de deglutição, ou então, o encaminhamento para outros serviços, profissionais e/ou médicos.8 Sendo assim, o rastreio não possibilita diagnóstico ou permite tomada de decisão clínica.
Os testes de rastreio para disfagia, em geral, têm alta sensibilidade e baixa especificidade, o que permite a detecção da condição na maioria dos pacientes, porém, tendo a desvantagem aceitável de alta taxa de falsos positivos.9
A utilização de uma triagem sistemática em disfagia pode resultar na diminuição significativa de casos de pneumonia aspirativa e na melhoria do estado geral do paciente10, uma vez que permite a intervenção da equipe multiprofissional e acompanhamento clínico fonoaudiológico precoce. Vale ressaltar ainda, que o rastreio da disfagia orofaríngea pode ser realizado não somente pelo fonoaudiólogo, mas também por diferentes membros da equipe multiprofissional: médicos, enfermeiros, nutricionistas, dentre outros, uma vez orientados e treinados pelo fonoaudiólogo para estarem aptos a identificar os casos de risco para disfagia e realizar o encaminhamento para avaliaçãoclínica fonoaudiológica.
A literatura indica que o início das publicações sobre instrumentos de rastreio da disfagia iniciaram em 1999. Etges et al.7 em sua revisão sistemática destacam que 50% dos artigos foram desenvolvidos nos Estados Unidos e 20% no Reino Unido. 70% das publicações ocorreram a partir do ano de 2008, o que pode se justificar pela crescente atuação fonoaudiológica na área hospitalar e a preocupação com a identificação precoce dos pacientes disfágicos. Acrescenta ainda, que a maior parte dos testes de rastreio acontece apenas em pacientes pós-AVC (Acidente Vascular Cerebral).
Logemannet al.5 relatam que muitos dos instrumentos de rastreio existentes foram desenvolvidos apenas para identificar pacientes que aspiram, para separar daqueles que não aspiram. Poucos deles foram desenvolvidos com a capacidade de identificar os pacientes com ou sem distúrbios na fase oral da deglutiçãooucom ou sem problemas na fase faríngea.
Dentre os diversos instrumentos publicados, merecem destaque: 3-oz Water Swallow Test Study (3OZWST)11, The Yale Swallow Protocol12, The Toronto Bedside Swallowing Screening (TOR-BSST)13, Sydney Swallow Questionnaire (SSQ)14 e o intrumento The Eating Assessment Tool (EAT-10) que ganhou sua equivalência cultural da versão brasileira em 2013 no estudo de Gonçalves, Remaili e Behlau. 15
Cabe destacar que, nenhum instrumento de rastreio da disfagia orofaríngea será suficiente para substituir a necessidade de uma avaliação detalhada realizada pelo fonoaudiólogo, ou suprir a importância da assistência de toda a equipe multidisciplinar ao paciente disfágico em todos os níveis de cuidados e acometimentos, uma vez que cada instrumento tem pontos fortes, mas também limitações.
Avaliação Clínica
A avaliação clínica da deglutição é a maneira mais utilizada pelos clínicos por apresentar alguns benefícios: 16
- É rápida, não invasiva e de baixos recursos financeiros para investigar a suspeita clínica de um distúrbio de deglutição.16
- Permite eleger a possível causa/etiologia da disfagia, formular hipóteses e definir objetivos e condutas, bem como determinar a necessidade de exames e avaliações complementares devendo ser bem executada pelo fonoaudiólogo.16
A avaliação possui importante papel na investigação da disfagia porque, ao contrário dos instrumentos de rastreio, possibilita diagnosticara presença ou não do distúrbio de deglutição, o que permite classificar seu grau de comprometimento e gravidade, bem como os mecanismos fisiológicos que estão alterados e os efeitos que a disfagia pode causar no quadro clínico geral do paciente.16
Os instrumentos de avalição clínica fonoaudiológica possibilitam o diagnóstico, a tomada de decisão e o desfecho clínico para a reabilitação. Através dela, o profissional será capaz de reportar à equipe se o pode ou não comer por via oral, se total ou parcialmente e se é necessário algum ajuste de consistência da dieta.
A avaliação clínica como um dos objetivos ser um dos indicadores a determinar a segurança e eficiência da alimentação por via oral e/ou recomendar métodos alternativos de alimentação. Para isso, independente do protocolo a ser utilizado para o exame, a avaliação clínica da deglutição deve acontecer em etapas que incluem a investigação da história clínica do indivíduo por meio de uma anamnese, seguida da avaliação estrutural e, por fim, a avaliação funcional.16
Uma vez finalizada a avaliação funcional, o fonoaudiólogo deve então seguir um raciocínio clínico, levando em consideração especialmente os mecanismos fisiológicos da fase oral e da fase faríngea que se inter-relacionam e fazer a classificação do grau da disfagia, tomando as condutas necessárias. Para a classificação da gravidade do distúrbio, estão publicadas diversas escalas na literatura, como as propostas por O'Neil et al.17 e Padovani et al.18. Já para a classificação do nível de ingestão via oral, usa-se amplamente a Escala FOIS - Functional Oral Intake Scale .19
Atualmente existem pelo menos cinco instrumentos de avaliação clínica da deglutição publicados. Seguindo uma linha histórica, os estudos iniciaram em 1999 com a publicação do Northwestern Dysphagia Patient Check Sheet (NDPCS) elaborado por Logemann, Veis e Colangelo.5 Em 2013, Magalhães et. al.20 colaboradores fizeram a tradução e adaptação transcutural deste instrumento para o português brasileiro, mas não procederam com a validação do instrumento, mantendo a acurácia do estudo original.20
O PARD, Protocolo Fonoaudiológico de Avaliação do Risco para Disfagia, publicado em 2007 por Padovani et al., foi elaborado com base na literatura e levando em consideração os protocolos existentes até a data. Os autores identificaram os pontos comuns em todos, os pontos não comuns foram excluídos e os itens julgados relevantes foram incluídos. Este protocolo é o segundo instrumento brasileiro.
Em 2008, o protocolo MASA: The Mann Assessment of Swallowing Ability de autoria de Carnaby-Mann e Lenius foi criado e publicado como capítulo de livro e não é encontrado em artigo científico.21 No Brasil, aos cuidados do grupo da Dra. Giedre Berretin-Félix, este instrumento passou pela tradução transcultural para o português brasileiro no estudo de Quinalha et al.22 (2013) e se encontra atualmente em processo de validação para o português brasileiro.
Ainda em 2008, Clavé et al.23 propuseram e realizaram um estudo para determinar a acurácia de um teste clínico à beira leito, denominado Volume-Viscosity Swallow Test (V-VST), para detectar sinais de disfagia e alterações na segurança do processo de deglutição de pacientes com risco para a disfagia orofaríngea.23
Por fim, em 2013, Carnaby e Crary apresentaram o MASA-C, que segundo as autoras, trata-se de um instrumento confiável, válido e sensível às diferenças no desempenho da deglutição em pacientes com câncer de cabeça e pescoço.24
Conclusões
As terminologias de rastreio e avaliação encontradas na literatura ainda causam confusão entre os profissionais. Nesse sentido, torna-se importante lembrar que rastrear e avaliar não são apenas termos diferentes, mas possuem definições e objetivos clínicos diferentes. Escolher o instrumento que não responda aos questionamentos que estão tentando ser respondidos pode levar o profissional fonoaudiólogo ao erro da sua decisão clínica. Por isso, é imprescindível ter clareza sobre as diferenças entre os instrumentos.
É urgente identificar os pacientes com disfagia orofaríngea, assim como investigar muito mais do que apenas se um paciente aspira ou não, mas também entender os mecanismos fisiológicos das fases oral e faríngea que estão comprometidos e que desestruturam o funcionamento da deglutição. Ser capaz de responder com clareza as diferentes perguntas clínicas fará com que o desfecho clínico do paciente seja mais objetivo e resolutivo.
Ampliar a participação da equipe multiprofissional no rastreio da disfagia é necessário, a fim de identificar o maior número de pacientes disfágicos, proporcionando a integralização do cuidado e possibilitando o compartilhamento dos conhecimentos específicos de cada área, objetivando assim, a mais completa intervenção ao indivíduo com disfagia orofaríngea.
Referências bibliográficas
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Visando a identificação e avaliação precoce da disfagia, instrumentos de rastreio e avaliação clínica estão descritos na literatura e, a escolha de um ou outro está intimamente relacionada ao questionamento que o profissional está tentando responder. É importante ressaltar que esses instrumentos tornam a investigação dos distúrbios de deglutição mais planejada e fidedigna e possuem diferentes objetivos e os fonoaudiólogos são os profissionais habilitados para prevenir, avaliar, diagnosticar e habilitar/reabilitar as alterações funcionais da deglutição e gerenciar os distúrbios da deglutição, assim como treinar os membros da equipe multidisciplinar e cuidadores para a identificação de indivíduos com disfagia, encaminhando-os para uma avaliação clínica fonoaudiológica. Leia mais.
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